Mario Kubo é um descendente de japoneses insatisfeito com sua vida que faz uma busca por autoconhecimento ao vagar pela noite na Liberdade, famoso bairro oriental de São Paulo.
13/08/2014
Há 102 anos, os primeiros imigrantes japoneses chegaram ao Brasil. Os que vieram para a cidade de São Paulo instalaram-se na rua Conde de Sarzedas e passaram a ocupar as vias ao redor. Talvez não imaginassem que viriam a criar um dos bairros mais icônicos da capital paulista, espécie de atração turística até para quem mora na megalópole. Com suas famosas lanternas suzurantõ que marcam o estilo oriental da decoração local, a Liberdade deixou de ser o “bairro japonês” quando, no decorrer das décadas, chineses e coreanos passaram a habitar a região.
A singularidade do agora chamado “bairro oriental” de São Paulo serve não só de cenário, como também é praticamente um personagem em Estação Liberdade (2013), primeiro longa de ficção de Caíto Ortiz. O diretor de Motoboys – Vida Loca (2003), premiado na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, não carrega cacoetes da sua origem como documentarista para o seu drama psicológico. Nem tampouco esquece a realidade dos descendentes de japoneses no Brasil, representada na figura de Mário Kubo (Cauê Ito), um nissei à procura de sua própria identidade.
Atado a uma rotina desestimulante, o gemólogo é cobrado pela própria mulher (Carolina Sudati) por sua dificuldade de se relacionar com as pessoas. Para o espectador, fica a impressão de que ele tem a sensação não pertencer àquele lugar. Porém, se não se sente um brasileiro, Mário também não é o “japa” que os outros costumam chamá-lo. Sem contato com a cultura de seus ancestrais, ele não consegue decifrar os ideogramas japoneses e ler o que está escrito na misteriosa carta que recebeu da “terra do Sol nascente”, junto com uma foto dele quando criança no colo do pai.
A correspondência reacende nele o trauma da falta de uma figura paterna, já que, desde que seu progenitor foi para o Japão, quando ele e os irmãos eram pequenos, nunca mais o viu. Esse é o estopim para a bomba de sentimentos acumulados pelo protagonista, que explode quando ele pega o último trem do metrô e acaba descendo na estação Liberdade. Seguindo a síntese do nome do bairro fundado pelo seu povo ancestral, o nissei foge de sua rotina e percorre as ruas, estabelecimentos e cantos mais inusitados, conhecendo um pouco mais da cultura japonesa com alguns descendentes, a exemplo do tipo misterioso interpretado por Kentaro Inoue, e cruzando com brasileiros, como a recepcionista do motel vivida por Fabiula Nascimento.
O longa acompanha, de maneira bem entrecortada e alternada, o dia-a-dia monótono do personagem versus a noitada regada a bebidas, cigarros, drogas e sexo. No entanto, a narrativa não-linear – na qual André Godoi, Caíto Ortiz, Giuliano Cedroni e Maria Fernanda Guerreiro pesam um pouco a mão no roteiro – somada aos close-ups da fotografia de Ralph Strelow – Hugo Takeuchi assumiu a função nas filmagens em terras nipônicas –, à edição frenética de Alexandre Boechat e Doca Corbett e à massa sonora que inclui o barulho dos vagões de trem como principal instrumento deixam uma dúvida. Será que tudo que se passa no filme é apenas um momento de liberdade do protagonista para compreender qual é sua verdadeira identidade ou este autoconhecimento não ocorre no plano físico, e sim dentro dos próprios pensamentos confusos de Mario?
No mais, Ortiz imprime grande força visual ao seu filme, tanto com alusões diretas – com vídeos reais logo no início – e indiretas – à água como elemento presente durante toda a película –, ao tsunami que arrasou o Japão em 2011, quanto fazendo referência à conhecida disciplina e organização do povo japonês com a recorrência de planos-detalhe em formigas. Assim como na cultura oriental, ou na ideia que se tem dela, os diálogos são escassos e dão margem ao trabalho de Cauê Ito, ator não profissional que encarna o protagonista e funciona bem nos momentos mais silenciosos ou extremamente barulhentos. Quando tem de lidar com as falas, porém, o fotógrafo na vida real soa artificial.
O resultado final é uma obra que não é de fácil apreensão por parte do público. Mas nem por isso o espectador, seja nikkei, brasileiro ou de qualquer lugar do mundo, deixará de se identificar ao menos em parte com as dúvidas de Mario e compartilhar de sua busca em Estação Liberdade.
Nayara Reynaud