Kirsten Dunst e Charlotte Gainsbourg interpretam duas irmãs cujas vidas se distanciam enquanto o universo se desmancha espetacularmente naquilo que Von Trier descreve como um belo filme sobre o fim do mundo. O filme competiu à Palma de Ouro em Cannes 2011 e ganhou o troféu de atriz para Kirsten Dunst.
08/04/2011
Melancolia, o novo trabalho do cineasta dinamarquês Lars Von Trier, começa em ultra slow motion, num prelúdio do que acontecerá mais adiante. O resultado é um filme visualmente muito elaborado, com inspiração em pinturas pré-rafaelitas e alemãs, música de Beethoven (como a Nona Sinfonia) e traduzindo a habitual visão niilista do diretor sobre a vida, as relações humanas, sobre tudo, enfim. Não escapa nem o destino do planeta.
Premiada em 2009 como melhor atriz em Cannes por Anticristo, a francesa Charlotte Gainsbourg retorna neste novo trabalho como Claire, uma das irmãs protagonistas da história. A outra é a norte-americana Kirsten Dunst, interpretando Justine, igualmente vencedora do prêmio de melhor atriz em Cannes. Melancolia divide-se em duas partes, a primeira dedicada a Justine, a segunda, a Claire, materializando a dualidade de uma reflexão sobre a irmandade, um dos temas do filme.
No início, uma enorme limusine quase atolada num caminho estreito demais para as suas dimensões sinaliza o início dos tropeços desta trajetória. A bordo está o par de noivos Justine e Michael (Alexander Skarsgard), ainda rindo de toda a situação, atrasadíssimos para sua grande festa. Uma pompa que não esconde as profundas dúvidas da moça quanto ao passo que está dando.
A partir dos discursos à mesa, dos pais divorciados das irmãs (John Hurt e uma Charlotte Rampling cortante e esplêndida, como sempre), as aparências que os anfitriões Claire e o marido, John (Kiefer Sutherland) estão tentando tão arduamente manter, começam a rachar. E segue adiante uma lenta e sistemática demolição das crenças convencionais de que o casamento, o sucesso profissional e financeiro possam sustentar qualquer tipo de estabilidade, seja pessoal ou coletiva.
Melancolia nasce diretamente de Anticristo, obra que marcou o auge da depressão do diretor. Melancolia é uma espécie de ritual de saída da depressão, mas que nem por isso conduz ao otimismo.
No mundo de Von Trier, não há alívio nem segurança possíveis na família, no amor, nas instituições, na cultura, na arte, no dinheiro, na infância. E, para piorar, estamos sós no imenso universo e, ainda assim, não vamos durar muito.
Não contente de arremessar toda a sua potente munição criativa, mais uma vez, contra a sociedade constituída e desautorizar quaisquer utopias, o diretor encena a destruição da Terra, diante do iminente choque contra outro planeta, Melancolia. Azul como a Terra, como um enigmático duplo do nosso, ele ficou escondido atrás do sol todo este tempo, por isso, até agora invisível. Quando sai da sombra, porém, é para valer.
Se há um porta-voz de Von Trier no filme é Justine, que, invocando uma espécie de onisciência mágica (a única que a história permite), num dado momento garante à irmã que não há vida em outros planetas. É esse tipo de pessimismo que o diretor destila todo o tempo, da forma mais estética possível. O Lars Von Trier despojado do Dogma 95 ficou definitivamente para trás, a não ser por uma câmera na mão por vezes instável demais no banquete de casamento.
Mais do que o fim do mundo, a história tematiza a condição humana. Que as personagens principais sejam duas mulheres, irmãs cujos nomes identificam as duas partes do filme, é outra afirmação do diretor sobre a própria ambiguidade da espécie. Claire é a racional, adaptada às convenções, esposa e mãe. Justine é a irmã rebelde, insatisfeita, insegura, que busca apoio no cerimonial do casamento, mas nada encontra. Independente da colisão de planetas, este mundo também desabaria de qualquer modo, a qualquer momento.
Se a obra de Von Trier é um retrato nítido de suas obsessões, não resta dúvida de que ele procura sempre novas ferramentas, técnicas e fórmulas para dizer o que tem a dizer. Visualmente, Melancolia é um esplendor, com a fotografia de Manuel Alberto Claro (chileno radicado na Dinamarca desde criança) e os efeitos visuais de Peter Hjorth, criando momentos especiais, como a fascinante sucessão de stills que abre o filme.
Pelo clima de elegia com um quê futurista, Melancolia às vezes lembra Stanley Kubrick, especialmente neste começo, como uma espécie de releitura pelo avesso de 2001 – Uma Odisseia no Espaço em outro tempo e contexto.
Neusa Barbosa