XXXX (Daniel Craig) sabe que está numa posição bem baixa no círculo social dos gângsteres de Londres. Embora esteja ganhando bem, sabe que está na hora de abandonar a vida do crime. Antes disso, terá duas missões a cumprir, nenhuma tão simples quanto parece.
03/08/2005
Depois de pouco mais de uma hora e meia de tiros, espancamentos e reviravoltas, Nem Tudo é o que Parece chega ao seu inesperado final ao som de “Don’t let me be misunderstood”, na interpretação melancólica de Joe Cocker. A música escrita em 1964 serve como um epílogo perfeito para tudo aquilo que se viu até então. Um pobre coitado que foi mal compreendido a vida toda e pede ao mundo, à amada e a Deus que as pessoas o entendam, afinal ele é apenas ‘uma alma de boas intenções’.
Mas de boas intenções, como diz o ditado, o inferno está cheio – nem que esse inferno seja na Terra. E o mundo dos gângsteres também. É isso que descobre o, por vezes ingênuo, e por vezes esperto até demais, protagonista do longa chamado apenas de XXXX, e interpretado com energia e sagacidade pelo ótimo Daniel Craig (Sylvia – Amor Além das Palavras) que, nesse filme em especial, lembra muito fisicamente Steve McQueen. O seu lado esperto lhe mostrou que o submundo onde ele atua, distribuindo cocaína para os chefões da máfia londrina, é dividido em castas, nas quais a mobilidade é praticamente zero. Ele está numa das camadas mais baixas dessa organização (daí o título original do filme ‘bolo de camadas’). Já a sua porção ingênua crê que é possível fazer um último negócio bem rentável, abandonar esse mundo e levar uma vida tranqüila.
Antes de se ‘aposentar’, XXXX recebe duas últimas tarefas: encontrar a filha de um bandido de alta classe que fugiu de casa; e arrumar os estragos feitos por um outro fora-da-lei que roubou tabletes de ecstasy de um chefão sérvio em Amsterdã. Tão logo o herói do filme descobre que pode estar sendo enredado numa missão suicida, ele praticamente encontra o motivo de ter sido colocado nesse mundo, a bela e sensual Tammy (Sienna Miller), a namorada do sobrinho de um perigoso mafioso.
Depois de estabelecidas essa meia dúzia de peças, Nem Tudo é o que Parece parte num jogo com dezenas de reviravoltas e alguns xeques-mates antes de chegar à voz de Joe Coker. Por mais mirabolante que o roteiro possa parecer, o melhor do longa é que tudo está ligado à descida de XXXX ao inferno na Terra e sua provável recuperação.
O roteiro foi escrito por J.J. Connolly, baseado no seu livro homônimo. O escritor é uma espécie de mestre dos livros de gângster na Inglaterra. E só a sua ambientação –que foge do padrão nova-iorquino típico de Hollywood – já conta como um grande diferencial, além do sotaque carregado. Connolly não se esquiva de traçar os paralelos entre a quase-rígida sociedade inglesa e o mundo do crime, e mostra que há muito em comum entre os dois. Afinal, sempre são os mais fracos da cadeia alimentar que se dão mal. Embora XXXX pense que pode mudar essa máxima.
O produtor Matthew Vaughn estréia na direção com esse longa. Parceiro de Guy Ritchie na alegria (Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes) e na tristeza (Destino Insólito), Vaughn se mostra um diretor mais talentoso e confiante do que seu sócio. Nem Tudo... é uma espécie de filme de Guy Ritchie com atitude – algo que vai além do mero divertimento e tem personagens desenvolvidos e não meros estereótipos ambulantes. Já a trilha sonora escolhida a dedo faz com que alguns momentos mais marcantes do filme ocorram ao som de “Ordinary World”, do Duran Duran, e “Gimme Shelter”, com os Rolling Stones.
E, por mais que o elenco de coadjuvantes esteja em ponto de bala, com destaque para o irlandês Colm Meaney, esse é um filme de Daniel Craig, e isso ninguém rouba dele. A certa altura cotado para ser o novo James Bond, o ator inglês de quase 40 anos, já ameaçava deixar sua marca e roubar a cena em produções como o primeiro Lara Croft e Sylvia. Agora finalmente ganha um filme só para ele e mostra porque é um dos mais talentosos a despontar no cinema inglês nos últimos anos. Sua performance em Nem Tudo é o que Parece mostra também que ele estaria mais à vontade fazendo um vilão em filme de James Bond do que o agente – até porque os ‘caras do mal’ sempre são mais marcantes do que o mocinho com licença para matar.
Alysson Oliveira