Por alguma razão, a discretíssima presença brasileira no Festival de Veneza – dois filmes em mostras paralelas – focaliza o universo dos velhos num ambiente rural. Bem na contramão da ditadura da juventude e dos ambientes urbanos que domina o mundo do entretenimento.
Histórias que só existem quando lembradas, de Júlia Murat, é ficção pura, reunindo dois ótimos atores veteranos, Sonia Guedes e Luiz Serra, além de outros esplêndidos amadores, numa pequena cidade do interior fluminense, cuja rotina é rompida pela visita de uma jovem (Lisa Fávero)
Girimunho, docudrama de Helvécio Marins e Clarissa Campolina, já embaralha as fronteiras dos dois gêneros, acompanhando duas simpáticas e criativas octagenárias, Bastu e Maria, moradoras de São Romão (MG) e convivendo, com razoável equilíbrio, em suas diferenças dos respectivos netos.
É uma presença mínima – que decorre da incompreensível miopia dos curadores do festival mais antigo do mundo em relação à América Latina, não só o Brasil. Ainda assim, os dois brasileiros ocuparam bem seu espaço, em duas mostras que valorizam a experimentação e os novos autores.
Girimunho leva sua experiência, inclusive formal, de conceito e linguagem, mais longe. Por isso, é um filme mais exigente, em termos da atenção do espectador, mas que, ao final, oferece maior prazer a quem o atravessa. Bastu, a incrível viúva que fala com o marido morto e resolve dispor de suas coisas para liberar-se de uma presença que já se tornou incômoda, é uma figura que fica na cabeça. Uma personagem de si mesma que, afinal, se redescobre diante desse olhar mágico que é o cinema e atravessou sem problemas as fronteiras para ser compreendida por plateias como estas de Veneza, que não têm a menor ideia de como o grande sertão de que falava Guimarães Rosa é uma entidade viva e permanente.
É um Brasil sensível e delicado este que desembarcou em Veneza. Um Brasil na medida dos tantos que somos, tantas faces, tantas idades, tantas vidas. Que bom estar aqui para vê-los em outro contexto.Às vezes a gente esquece o quanto o Brasil é diferente. E o quanto pode ser universal.